terça-feira, 3 de novembro de 2015

Você quer mesmo morar comigo?


"Sou eu, de novo. Foi mal, precisei sumir um tempo. Você me pegou de surpresa e eu tinha de pensar. Por isso não atendia telefone, campainha, carteiro e tudo isso. Mas aposto que você nem chorou. Não como eu chorei. Você nem é disso. Então, dei esse tempo pra mim. Pra nós, principalmente. E resolvi aceitar sua proposta, se tiver de pé. E aí, você quer mesmo morar comigo? Se não mudou de ideia, estou pronta. Falei com minha mãe. Ela disse que não era bem assim, que eu ia me arrepender, que tudo tem seu tempo. Mas bati o pé. Disse que estava decidida. Tudo no seu tempo, mas do meu jeito. Viu como é quando quero uma coisa? Vai se acostumando. A coisa está um inferno por aqui. A velha achou mais um nódulo e vai fazer uns exames na terça-feira. Deve ser benigno outra vez, mas ela quer porque quer ter um câncer. Na boa, não deve ser o sonho de toda mãe, mas certamente é o da minha. Essa será a sua sogra, o que você acha? Dá tempo ainda de mudar de ideia, só me avisa. Senti sua ausência. Quero dizer, minha ausência. Mas foi bom. Se ficar longe foi essa tortura, ficar tão perto não deve ser tão ruim assim. Mas ainda não penso que seja amor, não me convenci disso. É melhor. Sei lá, a palavra “amor” me remete a uma casa, um homem e uma mulher, cachorros, contas a pagar, planos de morar num lugar maior. Não dá pra ser amor entre duas crianças grandes num apartamento de um quarto só, dá? Tem muito mais entre a gente, essa incógnita de dois que sabem que não foram feitos pra durar. Você não quer saber nada do meu passado, eu quero saber do seu, mas você quase não abre a boca, e só diz o que interessa. Mas tudo bem, de verdade. Ou bom ou pra sempre. As duas coisas são incompatíveis. Minha mãe disse que não ia dar certo. E eu nem falei nada. Contei apenas que ia morar com alguém, pra dividir as despesas, essa coisa de preciso-do-meu-espaço, de ser independente e blá-blá-blá. Mas a coroa sacou na hora. Ela sabe que sou individualista, que gosto de comida na hora, que me nego a pagar a luz. Era meio óbvio que a força motriz só podia ser algo maior, não é? Mas deixei ela pensando o que quisesse, como ela faz com os abcessos achando que é algum tipo letal de sarcoma. As brigas podem esperar, não é? Diz alguma coisa. Voltei a ir na minha analista. Eu sei que você a odeia, diz que ela quase destruiu a gente uma vez, mas para de ladainha, poxa. Ela me ajudou. Sério! Esse negócio de deixar minha mãe pra trás. Racionalizei a minha culpa e percebi que estava sendo idiota. O que separa o passado inaceitável do recomeço inevitável é o período em que você para de negar e se permite sentir raiva. Muita raiva. Não foi bem isso que ela falou, mas foi o que entendi. Ou quis entender. Eu queria morar contigo e pronto. Tem lugar para os meus sapatos? Talvez aquela ideia de pendurar tudo num saco pra fora da janela não seja tão estúpida. Brincadeira. Aposto três meses de aluguel adiantado que você consegue lugar pra mim dando um jeito naquele seu roupeiro. Você pode doar algumas camisetas, as mais desbotadas, ou seja, quase todas. Agora me dei conta do que falei, então não pensa que já estou tentando te mudar, óquêi? Acho que semana que vem estou pintando aí. Estou com vontade da tua boca. Só me sinto segura perto dela, assim eu sei que ela não está fazendo bobagem por aí. Fez frio esses dias. Você não acha? E olha que já é novembro. Mas pra você tanto faz, nunca vi tão calorento. Seja julho ou fevereiro, você sempre acorda empapado. Anda com algum sonho ruim? É comigo? Se for, não me conta, não quero saber. Dormindo contigo, eu nunca me sinto gelada, pelo menos, adoro acordar de manhã com a lombar cheia do seu suor. Aliás, precisamos ver umas cortinas para o seu quarto. Opa, nosso quarto. Ainda não me acostumei. Vai levar um tempo. Tomara, porque se a gente começar a se sentir casado, vamos estragar tudo. Também pensa assim? Estou contando os dias. Quero sentir o cheiro da sua cama bagunçada de novo. E assistir você caminhar nu até o banheiro. Sua bunda é fofa. Não vamos ter filhos. Nunca. Tudo bem pra você? Se bem que nunca é uma palavra que não funciona nunca comigo. Nunca. Eu disse que nunca ia morar contigo. Que nunca mais queria te ver. Gritei uma vez pra você nunca mais tocar em mim, lembra? Mas é que você faz isso tão bem. É como se o meu corpo fosse teu. Um brinquedo que você monta e desmonta, vai mexendo nos parafusinhos, fuçando peça por peça, sem nem precisar ler o manual. Sei lá, não me pergunte como consegui dar essa desaparecida. Quando estava de pé queria ficar sentada, quando me sentava precisava levantar. É como dirigir à noite numa rua deserta e toda esburacada. Uma agonia doida. Um vazio. Uma vontade de sair da própria pele e telefonar, só pra te ouvir falando suas monossílabas pra dentro. Talvez resistisse mais, assinando uma tevê com mais canais ou engordando a geladeira. Mas eu só deitava e esperava. Se eu resolver outra vez ficar longe, pelo menos espero que me dê um bom motivo. Faz isso por mim? Digo, se for pra dar errado, você pode me fazer o favor de ferrar com tudo de uma vez? Me sinto ridícula escrevendo essa carta. Eu saí tanto de mim pra entrar na tua que até me sinto uma estranha dentro de mim mesma. E eu sempre tive medo de estranhos. Entende? Você está aí ainda? Você também deve estar achando patético ler isso. Te conheço. Eu não sei se você também não sabe o que mesmo estamos tanto esperando para nos encontrar."
- Gabito Nunes

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